Do Professor André Coelho no Facebook
Ontem ataquei a pobreza dos argumentos com que se critica o
Bolsa-Família na imprensa e nas redes sociais. Minha postagem teve uma
boa repercussão, recebeu muitas aprovações, comentários e
compartilhamentos, mas deixou em aberto a questão de com que argumentos
se poderia defender o programa. Quero agora fazer uma contribuição nesta
direção. Vou explicar do que se trata o Bolsa-Família do ponto de vista
econômico, quais são e quais não são os seus propósitos e até que ponto
faz sentido pensar nele como uma simples estratégia eleitoral.
O Bolsa-Família é um Conditional Cash Tranfer Program (CCT-Program),
isto é um programa de transferência condicional de renda: pessoas que se
encaixam em certo perfil e que atendem a certos critérios recebem uma
transferência direta de renda a partir de pagamentos periódicos
constantes. Neste sentido, é um dos inúmeros programas do tipo
atualmente implantados no mundo, boa parte dos quais por sugestão ou
exigência de órgãos como o Banco Mundial e Fundações como Rockfeller e
Ford.
Os programas CCT fazem parte de certo tipo de estratégia de combate à
miséria e à marginalização que consiste em (1) devolver a certa parcela
excluída da população poder de consumo e de compra que não a obrigue a
se submeter a trabalhos exploratórios, degradantes e sub-remunerados e
em (2) fazer investimento numa geração de indivíduos daqueles grupos
sociais excluídos para que a geração seguinte tenha condições de
educação e trabalho melhores que a atual, de modo a eliminar a
dependência do programa apenas no longo prazo.
Estes programas correspondem a uma teoria econômica sustentada em
cálculo matemático e bastante comprovada pelas experiências de
aplicação: a Poverty Cycle Analysis, no interior do quarto modelo de
Estado de Bem-Estar, voltado para os problemas de miséria e
marginalização típicos das sociedades capitalistas emergentes no cenário
da Globalização.
Eles não são invenção da cabeça de um partido político: São
recomendação econômica básica para implementação de uma rede de
sustentação social que impeça os níveis de miséria e marginalização de
ultrapassarem certo patamar percentual a partir do qual se tornam
perigosos para a manutenção da retroalimentação produtiva de médio prazo
e de taxas constantes de crescimento.
Também não são qualquer tipo de caridade: Correspondem a direitos,
direitos sociais de acesso a meios materiais bastantes para manter-se
fora da zona crônica de risco social em que a autonomia e dignidade da
pessoa se veem completamente esvaziadas. Portanto, não são “dinheiro
tirado da classe média e dado aos pobres”, e sim ao mesmo tempo uma
estrutura de satisfação de direitos e de investimento num ciclo
intergeracional que não seja suicida para o mercado de consumo e de
trabalho. Não tem nada a ver com altruísmo, e sim com respeito à
cidadania e com o mínimo de inteligência econômica em planejamento de
médio e longo prazo.
Programas do tipo CCT não visam nem sustentar as pessoas atendidas
com dinheiro público (as parcelas pagas são inferiores a um salário
mínimo e servem para complementar a renda necessária à manutenção de uma
família) nem reinserir estas pessoas a curto prazo no mercado de
trabalho. Eles têm um objetivo muito preciso e recortado: reduzir a
miséria na geração presente e acabar com a dependência na geração
seguinte. Se, além disso, o Estado tiver a pretensão de reinserir as
pessoas atendidas no mercado de trabalho em condições de maior
qualificação e renda, precisará para este fim de um novo programa social
que não é do tipo CCT, mas que, se existir, terá seu êxito dependente
de que as pessoas estejam sendo beneficiadas por um programa CCT e por
isso possam ser qualificadas e redirecionadas a um emprego.
Por isto, a crítica que se faz ao fato de as pessoas atendidas pelo
Bolsa-Família não estarem se tornando autônomas ao ponto de não
precisarem mais do programa precisa ser reelaborada: Ela tem um aspecto
verdadeiro, que é que algum tipo de investimento precisaria ser feito
num programa social de qualificação e reinserção produtiva, coisa que o
Estado brasileiro faz, mas numa proporção que está muito longe do
desejável; mas ela confunde uma crítica que deveria ser feita à falta de
ações complementares ao Bolsa-Família com uma crítica ao próprio
Bolsa-Família, o que é um equívoco, porque cobra de um programa CCT
propósitos que lhe são estranhos e que ele jamais nunca tem a pretensão
de alcançar. Sobre ser desejável que as pessoas pudessem sustentar-se
por conta própria e não precisarem de nenhum tipo de assistência
estatal, isto está correto, mas nem é uma crítica ao Bolsa-Família, e
sim à falta de ações complementares a ele, nem invalida o Bolsa-Família,
porque este programa tem propósitos que estão sendo alcançados com
êxito mesmo que os grupos beneficiados não estejam sendo a curto prazo
reinseridos no ciclo produtivo. Repito: O Bolsa-Família só reverte a
miséria em reinclusão social na perspectiva intergeracional, isto é, com
vista aos filhos e netos dos atendidos, e não a eles próprios.
Sobre tratar-se de uma estratégia eleitoral, de um sistema
institucionalizado de compra de votos, de manutenção com dinheiro
público de um curral eleitoral fiel para o projeto de poder de um
partido político específico, o argumento precisa ser examinado com
cuidado. Dadas as explicações acima, pelo menos algumas versões desta
crítica teriam que ser excluídas. Como não se trata apenas de “tirar
dinheiro da classe média e dar ao pobres”, e sim de satisfazer direitos
sociais que as pessoas realmente têm e tomar providências econômicas que
são altamente recomendadas, não se pode dizer que o programa é injusto
ou não deveria existir. Mais ainda: Qualquer que fosse o partido no
poder, do ponto de vista econômico, a recomendação social e econômica
continuaria sendo exatamente a mesma. Neste sentido, o Governo atual faz
apenas o que tem que fazer ao manter e ampliar o programa.
O crítico, se tiver aceito a explicação, terá que transitar para
outro formato de crítica: Terá que dizer que o Governo atual é menos
eficaz do que deveria no que se refere à implementação das ações
complementares ao Bolsa-Família e que age assim de propósito, de modo a
manter largas faixas sociais sob estado de dependência econômica do
programa e conseguir desta forma sua fidelidade eleitoral. Mas esta nova
formulação da crítica, além de não atacar o Bolsa-Família em si, e sim a
falta de ações complementares a ele, ainda tem outro problema, que é
supor que, se as pessoas estivessem sendo reinseridas no mercado de
trabalho como deveriam, os pagamentos das parcelas do Bolsa-Família já
poderiam estar deixando de existir. Isto não é verdade. O Bolsa-Família
representa uma rede de proteção social para grupos marginalizados em
escala crescente e preocupante. A menos que o PIB do Brasil estivesse
crescendo em padrões inimagináveis de 10 a 15% ao ano, seriam impossível
criar vagas de emprego formal remunerado decentemente para todos os
beneficiários do programa. Em nosso ritmo de crescimento (e inclusive se
o crescimento fosse de três a quatro pontos percentuais acima do
atual), só é esperável que o mercado de trabalho tenha vagas para tantas
pessoas no prazo de oito a dez anos.
Além disso, muitas destas pessoas, longamente vitimizadas pela
miséria, não tem uma situação de escolaridade e experiência profissional
que possa ser revertida a curto prazo em qualificação suficiente para o
mercado de trabalho formal atual. Muitas delas habitam também regiões
que não estariam sendo beneficiadas pela criação das novas vagas de
trabalho mesmo que estivéssemos crescendo a 10 a 15% ao ano (o que toca
no complexo tema dos projetos de desenvolvimento regional e da
dificuldade de implementá-los ao mesmo tempo em que a estabilidade da
moeda depende de capital especulativo e em que se privilegia um modelo
de agricultura voltada para a exportação e baseada no grande latifúndio e
em que se consomo tecnologia de ponta que ou é diretamente importada do
exterior ou paga royalties ao exterior – ou seja, um tema que toca em
basicamente todo o modelo econômico e desenvolvimentista nacional).
Mesmo que houvesse aumentos das vagas de trabalho e que as pessoas
marginalizadas já estivessem qualificadas o bastante para ocuparem estas
vagas, elas se concentrariam nas cidades grandes e médias e obrigariam
estas pessoas a uma migração massiva que apenas multiplicaria os
problemas urbanos que já enfrentamos hoje. Por isso, qualquer programa
do tipo CCT será implantado no Brasil tendo como perspectiva sua
ampliação ao longo dos anos e sua manutenção por longo período de tempo,
até que seu resultado intergeracional venha a se manifestar em níveis
razoáveis. Ou seja: O Bolsa-Família ainda estaria sendo pago, em níveis
cada vez mais ampliados, mesmo que as tais ações de reinserção produtiva
(que também teriam resultado limitado no curto prazo) estivessem sendo
tomadas em volume muito maior que o atual.
A única alternativa que restaria a este crítico seria adotar uma
versão absolutamente não razoável de sua objeção: Dizer que o motivo
pelo qual o Governo não produz o crescimento econômico na faixa de 10 a
15% e o motivo pelo qual o Governo mantém o modelo econômico e
desenvolvimentista atual são absolutamente propositais e cuidadosamente
arquitetados para manter-se no poder com base neste suposto curral
eleitoral criado pelo Bolsa-Família. Bom, se você acredita que o Governo
sabotaria o desenvolvimento nacional como um todo apenas para manter um
plano falível de ver-se reeleito pelos beneficiários de um programa que
qualquer outro partido no poder pode manter e ampliar, então, você
acredita em teorias conspiratórias bizarras como que o próprio Governo
dos EUA mandou bombardear as Torres Gêmeas para justificar a invasão do
Oriente Médio e coisas do tipo. É uma opção legítima, mas valerá para
você a regra que vale para qualquer conspiracionista: é você que fica
inteiramente com o ônus da prova. É mais razoável supor que o Governo
brasileiro está implementando um programa de tipo CCT com sucesso, mas
não está tendo igual sucesso em produzir crescimento interno acelerado e
reinserção produtiva de curto prazo, ou supor que ele poderia, se
quisesse, estar produzindo todo o crescimento econômico e a reinserção
produtiva necessários para não haver mais Bolsa-Família, mas não o faz
porque tem o plano de manter-se no poder com base na gratidão e no medo
das pessoas tiradas da miséria extrema pelo programa? Deixe o seu bom
senso decidir.
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