A “gastança” pública dez anos depois
No contexto livre, divulgado pelo engajarte
Em 2009, o PSDB soltou uma nota em que afirmava: “o Palácio do Planalto
promove uma gastança…”. Em qualquer dicionário, gastança significa
excesso de gastos, desperdício. A afirmação feita na nota somente tem
utilidade midiática, mas não é útil para a produção de análises e
discussões sérias em torno da temática das finanças públicas
brasileiras.
A dívida pública deixada para o presidente Lula era superior a 60% do
PIB. O déficit público nominal era de 4,4% do PIB. Esses são os números
referentes a dezembro de 2002, o último mês de Fernando Henrique Cardoso
na presidência.
GASTO SOCIAL TOTAL PER CAPITA
De forma ideal, a administração das contas públicas deve sempre buscar a
redução de dívidas e déficits. Deve-se buscar contas públicas mais
sólidas. A motivação para a busca desta solidez não está no campo da
moral, da ética, da religião ou do saber popular que diz “não se deve
gastar mais do que se ganha”.
A motivação está no aprendizado da Economia. Aprendemos que o orçamento é
um instrumento de combate ao desaquecimento econômico, ao desemprego e à
falta de infraestrutura. Contudo, o orçamento somente poderá ser
utilizado para cumprir estas funções se houver capacidade de gasto. E,
para tanto, é necessário solidez e robustez orçamentárias.
A ideia é simples: folgas orçamentárias devem ser alcançadas para que
possam ser utilizadas quando a economia estiver prestes a provocar
problemas sociais, tais como o desemprego e a redução de bem-estar.
Portanto, a solidez das contas públicas não é um fim em si mesma, mas
sim um meio para a manutenção do crescimento econômico, do pleno emprego
e do bem-estar.
A contabilidade fiscal feita pela equipe econômica do governo do
presidente Lula mostrou como essas ideias podem ser postas em prática.
Houve melhora substancial das contas públicas que resultaram da boa
administração durante o processo de aceleração das taxas de crescimento.
O presidente Lula entregou à presidenta Dilma uma dívida que
representava 39,2% do PIB. Ao final de 2012, a dívida foi reduzida ainda
mais: 35,1% do PIB. O presidente Lula entregou para a sucessora um
orçamento com déficit de 2,5% do PIB. Ao final de 2012, este número foi
mantido.
Foi essa administração fiscal exitosa que deu ao presidente Lula
autoridade política e solidez orçamentária para enfrentar a crise de
2009, evitando que tivéssemos uma profunda recessão e uma elevação
drástica do desemprego. No ano de 2009, a relação dívida/PIB aumentou
para 42,1% e o déficit público nominal foi elevado de 2% para 3,3% do
PIB. Em compensação, naquele ano de crise, foram criados mais de 1,7
milhão de empregos formais e o desemprego subiu apenas de 7,9%, em 2008,
para 8,1%, em 2009.
Em paralelo à consolidação fiscal, os governos dos presidentes Lula e
Dilma promoveram ampliação dos gastos na área social. A área social
engloba: educação, previdência, seguro desemprego, saúde, assistência
social etc. O investimento social per capita cresceu 32% em termos reais
entre 1995 e 2002. De 2003 a 2010, cresceu mais que 70%. Cabe ser
destacado que mesmo diante da fase mais aguda da crise financeira
internacional de 2008-9 os investimentos sociais não foram contidos – a
partir de 2009, houve inclusive uma injeção adicional de recursos nessa
área.
Os números não são refutáveis. São estatísticas oficiais organizadas por
milhares de técnicos competentes. O Estado brasileiro está consolidado
em termos de responsabilidade com a geração de estatísticas. No Brasil,
não há maquiagem ou ocultação de dados. Portanto, temos elementos para
fazer análises consistentes das finanças públicas que dispensam a
utilização de termos midiáticos jogados ao ar: gastança! Nos últimos dez
anos não houve gastança, houve organização fiscal. Houve também aumento
significativo de gastos na área social. Essa é a radiográfica precisa
dos números.
A distribuição da renda dez anos depois
O índice de Gini foi reduzido. Este índice mede a distribuição da renda e
varia entre 0 e 1. Quanto mais próximo de 1, maior a desigualdade e
quanto mais próximo de zero, maior a igualdade. O Gini brasileiro caiu
de 0,585, em 1995, para 0,501, em 2011. Contudo, este é um número que
ainda está distante dos índices de países tais como França (0,308) ou
Suécia (0,244).
No início dos anos 1960, o Brasil possuía um Gini inferior a 0,5.
Entretanto, os governos militares (1964-1985) adotaram um modelo de
crescimento econômico com concentração de renda. O Gini subiu. Em meados
dos anos 1990, com a queda da inflação, o índice de Gini sofreu uma
redução.
O índice de Gini é calculado com base na Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios (Pnad) do IBGE. Mais de 96% das rendas declaradas na Pnad
correspondem às remunerações do trabalho e às transferências públicas.
Sendo assim, a desigualdade medida pelo Gini/Pnad não é adequada para
revelar a distribuição da renda entre trabalhadores, de um lado, e
empresários, banqueiros, latifundiários, proprietários de imóveis
alugados e proprietários de títulos públicos e privados, de outro. O
índice de Gini não revela a participação das rendas do trabalho e do
capital como proporção do Produto Interno Bruto (o PIB, que é o valor de
todos os serviços e bens que são produzidos).
Além do Gini, é preciso analisar a distribuição funcional da renda:
capital versus trabalho. O processo de desconcentração da renda que está
em curso no Brasil vai além da redução do índice de Gini. Ocorre,
principalmente, devido ao aumento da participação dos salários como
proporção do PIB.
Houve uma trajetória de queda da razão salários/PIB de 1995 até 2003,
quando caiu a um piso de 46,23% (incluindo as contribuições sociais dos
trabalhadores e excluindo a remuneração de autônomos). A partir de
então, houve uma inflexão na trajetória, que se tornou ascendente. O
último dado divulgado pelo IBGE é de 2009. Neste ano, a participação dos
salários alcançou 51,4% do PIB superando a melhor marca do período
1995-2003, que foi 49,16%.
São variadas as causas do movimento positivo de aumento da participação
dos salários no PIB. O rendimento médio do trabalhador teve um aumento
real significativo entre 2003 e 2012. Houve um vigoroso aumento real do
salário mínimo nos últimos dez anos. E houve redução dos juros pagos
pelo governo aos proprietários de títulos públicos e redução dos juros
cobrados das famílias pelos bancos.
O índice de Gini/Pnad e a participação percentual das remunerações dos
trabalhadores no PIB são medidas complementares. Ambas representam
dimensões da desigualdade e do desenvolvimento socioeconômico do país.
As duas medidas mostram que o desenvolvimento socioeconômico brasileiro
está em trajetória benigna desde 2003-4. Elas mostram também que no
período anterior (1995-2003) as rendas do trabalho perdiam espaço no PIB
para as rendas do capital.
A recuperação do poder de compra dos salários foi o principal pilar da
constituição de um imenso mercado de consumo de massas que foi
constituído no Brasil nos últimos anos. Foi a formação desse mercado que
possibilitou ao Brasil sair apenas com pequenos arranhões da crise de
2008-9. O desenvolvimento econômico e social brasileiro depende,
portanto, do aprofundamento do processo distributivo em curso. Não
existirá desenvolvimento sem desconcentração de renda.
João Sicsú,
Professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Foi diretor de Políticas e Estudos Macroeconômicos do IPEA
entre 2007 e 2011.
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