Jureia Zaguetto Alves
Entrei na campanha do PT e passadas algumas semanas fui convidado a participar de um ato de artistas e intelectuais em apoio a Lula no Rio de Janeiro. Ao chegar ao salão apinhado de gente (acho que era na churrascaria Porcão), fui informado de que eu falaria “em nome dos escritores”. Apanhado de surpresa, eu não sabia direito o que dizer. Foi então que me lembrei que trazia na mochila uma preciosidade: um poema escrito em 1926 por Gilberto Freyre que me fora mandado dias antes por e-mail por uma amiga de Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco. Na verdade eu ignorava que o autor de “Casa Grande e Senzala” era dado à poesia. Mas não tinha dúvidas de que aqueles versos septuagenários de pouco mais de trezentas palavras caíam como uma luva para o momento vivido pelo Brasil, na iminência de eleger pela primeira vez um operário para a Presidência da República. O poema parecia atual também pela circunstância de que dias antes a atriz Regina Duarte aparecera no programa de TV de José Serra afirmando “ter medo” – medo, claro, de que Lula ganhasse a eleição. Enquanto Regina falava em medo, Gilberto Freyre semeava esperança.
Quando chamaram meu nome, subi ao palco e anunciei que, em vez de fazer um discurso, eu leria uma ode à esperança, o poema de Freyre:
O outro Brasil que vem aí
Gilberto Freyre, 1926
Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
de outro Brasil que vem aí
mais tropical
mais fraternal
mais brasileiro.
O mapa desse Brasil em vez das cores dos Estados
terá as cores das produções e dos trabalhos.
Os homens desse Brasil em vez das cores das três raças
terão as cores das profissões e regiões.
As mulheres do Brasil em vez das cores boreais
terão as cores variamente tropicais.
Todo brasileiro poderá dizer: é assim que eu quero o Brasil,
todo brasileiro e não apenas o bacharel ou o doutor
o preto, o pardo, o roxo e não apenas o branco e o semibranco.
Qualquer brasileiro poderá governar esse Brasil
lenhador
lavrador
pescador
vaqueiro
marinheiro
funileiro
carpinteiro
contanto que seja digno do governo do Brasil,
que tenha olhos para ver pelo Brasil,
ouvidos para ouvir pelo Brasil,
coragem de morrer pelo Brasil,
ânimo de viver pelo Brasil,
mãos para agir pelo Brasil,
mãos de escultor que saibam lidar com o barro forte e novo dos Brasis
mãos de engenheiro que lidem com ingresias e tratores europeus e
norte-americanos a serviço do Brasil
mãos sem anéis (que os anéis não deixam o homem criar nem trabalhar).
mãos livres
mãos criadoras
mãos fraternais de todas as cores
mãos desiguais que trabalham por um Brasil sem Azeredos,
sem Irineus
sem Maurícios de Lacerda.
Sem mãos de jogadores
nem de especuladores nem de mistificadores.
Mãos todas de trabalhadores,
pretas, brancas, pardas, roxas, morenas,
de artistas
de escritores
de operários
de lavradores
de pastores
de mães criando filhos
de pais ensinando meninos
de padres benzendo afilhados
de mestres guiando aprendizes
de irmãos ajudando irmãos mais moços
de lavadeiras lavando
de pedreiros edificando
de doutores curando
de cozinheiras cozinhando
de vaqueiros tirando leite de vacas chamadas comadres dos homens.
Mãos brasileiras
brancas, morenas, pretas, pardas, roxas
tropicais
sindicais
fraternais.
Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
desse Brasil que vem aí.
Emocionado, e diante da emoção daquela multidão, não resisti e repeti o verso final:
Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
desse Brasil que vem aí.
À saída Lula me pediu uma cópia do poema, que passou a ler no encerramento de todos os comícios dali em diante. Na primeira entrevista depois de eleito, ele declarou aos jornalistas: “O mais importante é que a esperança venceu o medo” – expressão que o ágil marqueteiro Duda Mendonça havia transformado em bordão de campanha.
Seria arriscado afirmar que o poema de Gilberto Freyre tenha sido profético em relação à Revolução de 30 – até porque a primeira providência do grande sociólogo, após a chegada de Vargas ao poder, foi asilar-se em Portugal. Nem acredito que Freyre, se vivo fosse, estaria ao lado dos petistas. Mas ao reler “O outro Brasil que vem aí” é impossível deixar de pensar que o país sonhado no poema começou com Lula. E continua com Dilma.
Fernando Morais, jornalista e escritor, é autor, entre outros, dos livros “Olga”, “Chatô” e “Os últimos soldados da Guerra Fria”.
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